sexta-feira, 17 de abril de 2009

PELAS RUAS DE LISBOA…

Fotografia / Sentidamente

Na década de sessenta, deslocava-me frequentemente de eléctrico e autocarro. Então, quantas vidas desfilaram por mim e comigo, às mesmas horas, numa não relação quotidiana!

Através dos pedaços de conversas, reconstituía vivências, emocionava-me com as dores que outros sofriam, num lugar talvez perto, mas completamente desconhecido. Cruzei-me com pares de namorados, mais tarde casados e depois com filhos ao colo. Passei anos, sentindo-me próxima e distante daquela gente.

Multiplicando esses arroubos de imaginação, pelo número de passageiros, maravilhava-me com a quantidade de pensamentos que fluindo no tempo, povoavam aqueles espaços móveis…

Foi por essa altura que conheci o livro de JOSÉ GOMES FERREIRA, POESIA - III e um capítulo chamado Eléctrico (1943, 1944, 1945). Imaginei-o a fazer apontamentos, enquanto viajava e percebi que só alguns, têm a capacidade de eternizar no tempo, a magia de fugazes momentos…

São desse capítulo os poemas que aqui deixo, dedicando a postagem de hoje, à minha amiga CAROLINA PALMINHA.

IV

(Não há espelho público em que eu não me mire,
sempre á espera de encontrar outra cara)

De repente,
no espelho da plataforma da frente
surgiu o clarão instantâneo
da minha face
a tentar gelar a realidade
_ para além da bruma das cicatrizes

Pobre pele esticada de disfarce
a dar uma aparência de unidade
a este enredo subterrâneo
de luas com raízes!


XVIII

(Todos os dias passo pelas Amoreiras)

Há lá renda que se assemelhe
a este tecido de árvores no Ar…
(Hei-de pedir à Maria Keil
para as pintar.)

Árvores do Jardim do Aqueduto
sem flor nem fruto,
nem nada de seu…

Só este azul de pássaros a cantar
que vai da terra ao céu.

XIX

(Nunca mais tornarei a ver esta minha
vizinha de eléctrico.)

Vem hoje um cheiro tão bom lá de fora do mundo!
Um cheiro a esponsais de Primavera
com deusas de astros na fronte
e enlaces de folhas de hera
no cabelo voado…

(Ah! Se eu encontrasse a ponte
que vai para o outro lado!)

XX

(Canção daquela borboleta verde que vi,
há momentos, aturdida num passeio de
Campolide.)

Borboleta verde,
aqui não há flores.
- Procuras nas pedras
Jardins interiores?

Borboleta verde,
aqui não há zumbidos.
- Procuras nas pedras
perfumes dormidos?

Borboleta verde,
aqui só há calçadas.
- Procuras nas pedras
As flores geladas?

Borboleta verde,
Chama quase morta.
- Também eu, também,
aos tombos nas pedras,
não encontro a Porta.
José Gomes Ferreira

14 comentários:

  1. Agrada-me a ideia das vidas cruzadas por instantes, das histórias pessoais que não se chegam a partilhar, mas que se imaginam. Ao fazê-lo, ao tentar adivinhar quem serão os outros, que alegrias que desgostos que particularidades, resgatamo-nos uns aos outros do anonimato, porque não é só o nome que nos individualiza, é a vivência, sempre tão semelhante e tão distinta. Eu acho que essa prospecção também é da borboleta verde.
    Um beijo dançado no ar e aterrado em cheio na flor da tua bochecha,
    a filha.

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  2. Que belas recordações, e sabe tão bem recordar momemtos por nós vividos, e que guardámos e ás vezes nem sequer pensamos que ao fim de muitos anos os vamos recordar e partilhar com o mundo.
    Bonitos tambem os capítulos desses poemas que dedicou á sua amiga. Boa Noite e boa semana


    IDALINA "LINHASELETRAS"

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  3. José Gomes Ferreira e a realidade, as cores , os cheiros , as gentes, os sentimentos despertos por tudo o que o rodeia numa Lisboa de encantos e de recantos.
    Para que tudo isto não nos escape só precisamos de estar vivos...sentidamente :))

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  4. Lindo, grandes recordações, eu bom recordar, um grande beijo.

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  5. Então a filha gostou da ideia das vidas cruzadas… de anonimatos que se resgatam através da imaginação… e da borboleta verde esvoaçando pela calçada de Campolide, qual jardim árido, há muitas décadas, tal como poderia acontecer hoje, numa procura sem sentido e num esforço inútil na sua efémera vida.
    Um beijinho fazendo o caminho de regresso daquele que me enviaste.

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  6. É verdade Idalina! Quem diria então, Que iria partilhar com o mundo tão simples recordações! Que evolução se fez nestas últimas décadas, tão mais significativa do que aquela quem vinha acontecendo há séculos!!!
    Beijinho e boa semana para si também

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  7. Quem é que ao chegar a esta altura da vida (idade), não tem sempre pronta, uma recordação a surgir, a propósito disto ou daquilo?
    Um abraço, Maria José

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  8. Vivos e atentos… lami! Como revela estar, na caracterização que sucintamente fez de José Gomes Ferreira.
    Bem-haja e até sempre

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  9. carolina sardinheira21 de abril de 2009 às 20:13

    Estou desvanecida com a homenagem!
    Sabes que o José Gomes Ferreira é um dos meus Poetas e Prosadores preferido?
    Foi com o seu livro "A Memória das Palavras" que descobri pela 1ª vez que os livroas mais do que um entretenimento, podiam dizer coisas e fazer-nos olhar para essas coisas duma maneira diferente.
    O José G. Ferreira desnuda não só a beleza que há ao nosso redor, como também desnuda os seus podres.
    é preciso é "ter olhos" para ver e descobrir essas subtilezas.
    Rilka já dizia, "se o quotidiano não te parecer interessante, não o culpes a ele e sim à tua incapacidade de olhar e ver a poesia que há naquilo que te rodeia."
    As palavras não serão exatamente estas,(não tenho aqui o livro) mas fica aqui a ideia que ele queria transmitir.
    Também gostei muito do teu texto.
    Tens olhos e VÊS a poesia que há nas coisas!
    Juja, és uma raridade!!!
    bjhs e obrigada pelos poemas! Lindos!...

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  10. Olá Mª Jesus

    Li pouco deste poeta, no entanto procurei na
    internet, quando a Mªde Jesus me comentou com uma poesia dele e acabei lendo alguns poemas.

    Destas recordações também guardo.Tantos passos iguais dados durante anos, apanhando o mesmo transporte, ali mesmo ao nosso lado, tão nossos conhecidos,fazendo parte do nosso dia a dia.

    Borboleta verde me sinto
    Na mais pura ilusão
    Vou fingindo e a mim minto
    Que com a Vida estou em perfeita comunhão

    Borboleta verde me sinto
    A quem a Vida não dá a mão
    Vou fingindo e a mim minto
    Que o meu tempo é tempo de eleição

    Beijinho

    Amanhã vamos ao passeio?
    Vai ser difícil madrugar

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  11. Minha querida Juja, passei para ler mais um poema e este dedicado à nossa querida Carolina,a tua escrita é uma maravilha !!!
    Vei-se que és uma pessoa que gostas muito de ler e escrever, um grande abraço e vai nos dando estas maravilhas, bj.

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  12. Carolina! Que bom teres gostado! Claro que eu sabia da tua preferência por José Gomes Ferreira.
    Não me sinto minimamente uma “raridade”. Sou um vulgar ser humano e como tal com defeitos e qualidades. Tenho alguma sensibilidade e também alguma dificuldade em geri-la sem que me traga sofrimentos. Porque não me tenho em grande conta, gosto da apreciação dos outros, que embora me traga ânimo não me torna convencida. Por exemplo, na escrita tento sempre fazer como se fosse uma primeira vez e por isso com mais cuidados que confianças. Acho-me mesmo uma pessoa demasiado triste, sem saber aproveitar em pleno o que a vida me traz de bom, embora tenha melhorado com algum esforço e aprendizagem.
    Um grande beijinho, amiga Carolina.

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  13. Olá Natália! Obrigada pelas quadras que espontaneamente lhe saem e com que me costuma presentear neste espaço de comentários.
    Foi muito agradável saber que ao deixar-lhe num comentário, um poema de José Gomes Ferreira, fiz a ponte que a levou a procurar a sua poesia.
    Beijinhos e até breve

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  14. Ana!Gosto sempre de encontrar aqui o sinal da tua presença. Agradeço especialmente, as palavras de apreço que me deixaste.
    Beijinhos

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